sexta-feira, 21 de março de 2014

Fundamentalismo é o nome que damos à fé dos outros – Parte 1

A Oceania é palco de algumas das experiências sociológicas mais inusitadas de nossa história. Por causa do contato tardio com o resto do globo, o choque de encontrar civilizações tecnologicamente mais avançadas gerou algumas respostas curiosas nos costumes dos nativos. Um desses exemplos de choque cultural é o chamado “Culto às Cargas”.

Ao conhecerem os homens ocidentais, os melanésios ficaram deslumbrados com a quantidade aparentemente infinita de cargas e bens materiais que estes possuíam. Para eles, todos aqueles presentes, ou “A Carga”, não poderiam ter sido feitos pelos visitantes. Nenhum povo conseguiria fabricar tantos bens. Não. A origem dos bens deveria ser divina. E, sendo divina, os melanésios também teriam direito a essa carga. Bastaria cultuar o deus correto e seguir os “rituais religiosos” dos forasteiros. Os nativos passaram então a construir aeroportos na floresta, com torres de comando, e rádios e até aviões (!) de madeira.



Nasceu o culto a John Frum, uma figura mítica que alguns dizem ser baseada em um soldado americano que trouxe grandes carregamentos por volta de 1930. Os adeptos acreditam que em 15 de fevereiro (não se sabe de qual ano), John Frum retornará, trazendo para seus devotos melanésios das ilhas de Vanuatu uma quantidade infinita de... Cargas. O culto floresceu a ponto de se tornar um costume central nas ilhas. Passaram-se 80 anos e os devotos reúnem-se diariamente para esperar.

Em uma expedição, o naturalista britânico David Attenborough ficou tão chocado quanto você deve estar e perguntou a um dos adoradores de Frum, o humilde “Sam”:

“(...) Mas Sam, já se passaram 19 anos desde que John disse que A Carga chegaria. Ele promete e promete, e mesmo assim A Carga não chega. Por acaso, 19 anos não é tempo demais para esperar?”

Sam apenas levantou os olhos e respondeu:

“Se você pode esperar dois mil anos para a volta de Jesus Cristo e ele não volta, então eu posso esperar mais do que 19 anos por John”.

E, se alguém quiser pensar menos dos nativos de Vanuatu, sugiro que visite sua própria igreja e comece a prestar atenção no que o sacerdote fala.


Advogado do Diabo

Posições controversas pelo bem do debate.

Referências


  • Attenborough, David (1960). People of Paradise. New York: Harper & Brothers.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Manifestações, violência policial e obediência à autoridade

“Jogaram muito gás, muito mesmo, e daí começaram a atirar com balas de borracha dentro da nuvem. (...) Alguns PMs estavam no sadismo mesmo.” – Thiago Earp, ferido nos confrontos de 2013 no Rio de Janeiro.



A recente explosão de manifestações ao redor do globo traz à tona situações absurdas de violência por parte das autoridades armadas. Inevitavelmente, a opinião geral é de que os homens e mulheres que compõem essas corporações são sádicas por natureza e descarregam isso nos manifestantes. Será mesmo que, sendo policiais, faríamos diferente?

Adolf Eichmann, coronel da SS nazista, foi um dos principais responsáveis pelo Holocausto, o genocídio de seis milhões de vidas durante a II Guerra Mundial. Foi julgado em 1961 e condenado à forca em 1962 por crimes de guerra.


Em seu julgamento, todos esperavam encontrar um monstro no banco dos réus, mas o que incomodou os presentes foi outra coisa. Nas palavras da filósofa Hannah Arendt:

“ O problema com Eichmann era precisamente que existiam muitos iguais a eles, e que esses muitos não eram perversos ou sádicos. Eles eram, e ainda são, terrivelmente e aterrorizantemente normais.”

Esperava-se um homem perverso, rindo das atrocidades cometidas e que se orgulhasse dos assassinatos em massa. Chocante foi encontrar um homem comum, que acreditava piamente estar apenas cumprindo seu dever, repetindo a frase “Eu estava apenas seguindo ordens”. Arendt concluiu que as maiores maldades da história não foram cometidas por sociopatas ou fanáticos, mas por pessoas normais que seguiam regras vindas de uma autoridade “legítima” sem questioná-la. A banalização do mal.

Imagine o seguinte experimento: é solicitado que um adulto aplique choques em um outro indivíduo a cada vez que este dê uma resposta errada num teste de memória. A voltagem dos choques aumenta progressivamente até um ponto possivelmente fatal.  Considerando pessoas normais, como sua mãe ou seu vizinho, quantas você acredita que chegariam a desferir um choque potencialmente mortal?



Como a maioria, sua estimativa deve ter ficado entre 0 e 10%. Os menos crentes na natureza humana arriscam 20%. A verdade é um pouco mais dura.

Cerca de 65% das pessoas aplicam os choques até o fim. Mais da metade. Tudo que você precisa para transformar um cidadão comum em potencial assassino é uma figura de autoridade ao lado dizendo “O experimento requer que você continue” ou “É absolutamente essencial que você continue”. Sem ameaças ou armas apontadas para a cabeça.

Os experimentos chocaram a sociedade e seus resultados só foram aceitos completamente depois de reproduzidos independentemente dezenas de vezes em vários países. É um fato: pessoas comuns cometem atrocidades para obedecer a uma autoridade.

Adolf Eichmann era mais parecido com um cidadão comum do que se esperava e os cidadãos comuns são muito mais parecidos com Eichmann do que o senso comum poderia supor. O que isso significa?

Quando ligar a TV e se deparar com as balas de borracha e as bombas de gás lacrimogêneo, pense duas vezes antes de julgar aqueles policiais. É muito provável que você ou a pessoa ao seu lado fariam o mesmo

Advogado do Diabo

Posições controversas pelo bem do debate.



  • http://m.g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/pms-estavam-no-sadismo-diz-ferido-com-4-balas-de-borracha-no-rio.html
  • Hannah Arendt. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil.  Penguin Classics; 1 edition. 2006 (Originalmente publicado em 1963)
  • Blass, Thomas (1999). "The Milgram paradigm after 35 years: Some things we now know about obedience to authority". Journal of Applied Social Psychology 29 (5): 955–978.